sexta-feira, 17 de outubro de 2008

o mecânico

João teve os olhos esmaecidos pelas lentes grossas dos óculos desde criança. Eram verdes-acizentados, grandes mas apagados como folhas secas de outono, que aceitavam tudo sem discutir, inexpressivos. João se tornou um bom carteiro. Todos os dias subia na sua bicicleta e passava horas pelas ruas, a distribuir, de acordo com os endereços, papéis e pacotes direcionados para outras pessoas. Era simples e bom. Mas, um dia, João notou de repente que nunca tinha recebido uma carta. E resolveu abrir uma, por curiosidade inocente. Foi das mais tristes já escritas no mundo - história inominável, terrível, cheia de feridas. Os olhos secos de João se encheram de lágrimas, o verde-cinza absorvendo tristeza de fora para dentro. Então ele decidiu, resoluto, nunca mais ser mensageiro do abandono. E foi assim que virou o mecânico da esquina.

10 comentários:

Daniel Guerra disse...

pra consertar bicicletas de carteiros e se sujar de graxa?

Bernardo Guimarães disse...

Jamais verei um mecânico da mesma forma que via antes...

- Luli Facciolla - disse...

Lindo texto!

Estou encantada!

Beijo

aeronauta disse...

Lindo, lindo texto... Fiquei emocionada.

Unknown disse...

Estou chocada. Esse texto me lembrou um meu. Engavetado e que nunca mostrei para ninguém. Que coisa são as idéias esparsas no ar.

Vâmvú disse...

Lindo texto.
Muito, muito bom!

Anônimo disse...

Pois é. Mas, o que chamou minha atenção na construção narrativa é o sentido dado ao vazio das nossas escolhas. Um carteira que nunca leu uma carta, que nunca recebeu uma carta. Uma irônia completa. E por fim a reflexão sobre o seu papel, tácita e pessimista, sintetizada por uma primeira experiência. Pois é. Isso é uma nota mínima sobre a nossa realidade imediatista. O universo de interpretação deste texto é vasto, porém, fico com o comentário acima: nunca olharei um mecânico do mesmo jeito. Pois é.

Caio Rudá de Oliveira disse...

Adorei. Eu deixo de lado toda essa filosofia dos comentários acima e me concentro somente no humor, finíssimo por sinal.

Caio Rudá de Oliveira disse...

E é claro, faltou o "maravilha de mini".

Ari Donato disse...

Minha amiga, que beleza, que beleza! A história, tão bem construída, grudou em mim tal qual uma bela melodia. Coisa de quem trabalha com a música, que é um respiro da alma.
Beijos em você e em Pierre.