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Pequenas reinvenções
CARLA BITTENCOURT*
publicado em 14/08/2010 no Caderno 2+, jornal A Tarde, Salvador (BA)
Começa com uma confusão e uma certeza, a menina que anda pela chuva de sandálias cantando Arnaldo Baptista. Aos poucos, o cotidiano vai enchendo páginas de pequenas histórias grandes, como essas que a gente vive e nem sabe.
Notas mínimas, livro da jornalista Katherine Funke, traz muito da sua autora, que invadiu a Flip para lançá-lo informalmente, mas também ganhou espaço na Bienal de SãoPaulo. Em sua estreia, ela mostra que economia de palavras não desfaz a intensidade do escrito.
Prova está na divisão dos textos, partidos ao meio com as duas sílabas de “haicai”. "Hai" é invenção feita de material urbano – mochila, metrô, bicicleta, gente com medo de pular na água, presa à estabilidade dos probleminhas resolvíveis. "Cai" é registro de mundo em diferentes personagens e lugares, o motorista numa capital burocrática, Mãe Preta, protetora das putas da Ladeira da Montanha, ou o sábio velhinho que achou melhor sentar quando o povo foi catar o dinheiro que estava caindo do céu em Maracangalha.
Comum aos dois momentos, a valorização das coisas simples. E que não se confunda com o que é fácil, como se já tivesse aprendido o que importa: que o óbvio pode ser incrível, que não se anda sem olhar para dentro, que o silêncio às vezes vale mais e que gente é feita de carne e sangue e erro.
Referência
Os microcontos existiam antes em blog homônimo e foram selecionados pela editora Solisluna. Na versão de papel, as linhas ganharam costura de fumaça de cigarro,ventinho dentro do pensamento, fila de banco, saguão de aeroporto, insônia e vontade de não seguir o ritmo de quem não lembra mais por que está com pressa.
Notas mínimas faz referência a escritores e músicos, mistura a embriaguez de Baudelaire às percepções de William Blake, as miudezas de Manoel de Barros ao rock de Raul Seixas, como se cada uma dessas citações fossem pausas em instantes breves, ou que parecem breves.
Poética, ela faz do simples um estilo, como quem não esquece que tanto os escritores quanto os jornalistas vivem de observar o mundo. Suas imagens desenham-se nessa leitura, o sol que amarela o vidro sujo da janela, a moça que acompanha o namorado ao estádio de futebol, a tristeza das pessoas de maxilar mastigado pela ansiedade, o apartamento dividido com sonhos que dormem cedo.
Quase escondidos no cotidiano, instante surreais: o empregado que trabalha para um polvo e a menina transparente como na animação A Viagem de Chihiro, de Hayao Miyazaki. Leitores ranzinzas talvez se aborreçam, mas a autora segue em frente e nos mostra o olho no espelho, o coração desenhado no lugar embaçado pela boca. Está sentada na pedra, pregada na pedra, querendo voar.
Ao mesmo tempo agora
Como essas ideias que passam anos sendo construídas e de repente emergem, veio a decisão de ”virar escritora“. A vontade, a catarinense radicada em Salvador cultivava há algum tempo e, agora, em vez de um projeto, tem vários acontecendo.
Na sequência de Notas mínimas – que deve ser lançado em Salvador, Joinville e no Rio de Janeiro –, Katherine está finalizando Maria João, em parceria com Luis Daltro. O romance, resultado do prêmio da Fundação Pedro Calmon, fez os autores viajarem pela Chapada Diamantina, onde buscaram inspiração para a história.
Ainda este ano, Katherine deve publicar o perfil biográfico do desenhista e escultor Mario Cravo Junior como parte da coleção Gente da Bahia, da Assembleia Legislativa. Na semana passada, outro investimento literário mostrou-se positivo: ela foi contemplada com uma bolsa de R$ 30 mil da Funarte para escrever crônicas sobre a velocidade do tempo.
No meio de tanta história, Katherine assegura que não pretende se afastar do jornalismo, mas investir no desafio de criar uma narrativa híbrida. Entre uma coisa e outra, gravou como certeza no seu primeiro livro: ”Para mim, escrever é reinventar nosso absurdo“.
*Carla Bittencourt é poeta, escritora, jornalista, compositora. E cozinheira. É editora de cultura do jornal A Tarde, de Salvador (BA).
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(2)
Funke-se, ao interior
EMMANUEL MIRDAD*
A pequenina passeia pela cidade com o seu caderninho vermelho, de páginas em branco, cinza e preto. Anota pedacinhos do que acabou de viver, pulsando, devagar e sempre. O seu corpo nu no espelho está ali, em palavras mínimas, para captar o sublime que sopra poemas em seu ouvido língua, que fala: estamos sós.
O futuro não é tão grande assim como um oceano; parece-me um riacho quase seco tal qual a fumaça que povoa múltiplas notas de um esvaziar-se. Mas a pequenina persiste, e acredita na beleza, ainda um dia, mais devagar, desacelerando e consumindo micropartículas do sol, irradiadas por estrelas à noite também.
Ela crê, agora ou nunca, nas interconexões que as formigas constróem de dentro de sua cabeça; que venha a chuva e me faça sorrir. E ela sorri e teu pequenino formato todo treme de si, feliz a se impor “estou viva e aproveito”.
Mais de quatro mil anos se passaram enquanto a observo escrever suas notas, do tamanho certo, para captar-me. E eu estou ali no caderninho vermelho também, contando as estrelas no céu e os vários desenhos de rostos diferentes. “Bobão”, ela me chama sem voz, apenas olhos e palavras, que só quer “manhãs ensolaradas, amanhã e sempre”.
Funke-se, ao interior, com a cabeça em Órion. E que venha a ressaca da lua cheia.
* Emmanuel Mirdad é poeta, jornalista, escritor. Acaba de lançar o livro de contos Abrupta Sede. Escreve Farpas e Psicodelia.
Filha
Há 11 meses
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