sábado, 14 de abril de 2007

a placa é o destino

NECROTÉRIO. Na placa branca de letreiro azul, é a única palavra que Risalva lê, todos os dias, vinte e quatro horas por dia. E para isso nao precisa nem se mexer. Aliás, não adianta tentar fugir. De qualquer ângulo da sua cama, uma das três daquele quarto apertado, a palavra parece lançar luzes azuis escuras sobre seus olhos.

NECROTÉRIO. É para onde o corpo dela vai quando morrer. Por enquanto, aqueles braços, aquela cabeça, aquele tronco e os cotos das pernas - a parte que sobrou depois da amputação - ainda tem serventia: incomodar as enfermeiras daquele abrigo de idosos.

Risalva só sai da cama quanto é carregada por uma enfermeira parruda, uma vez por dia, para ver a luz do sol e a passagem dos carros e pessoas da janela, por meia hora. Depois, sem lhe dirigir o olhar, outras enfermeiras lhe arrancam a camisola e vem o banho sofrido, de água gelada e sem carinho. Sua pele é esfregada por uma toalha velha no final.

Mandam-lhe vestir a camisola de volta. Bem devagar, mas sem querer irritar ninguém, aqueles braços moles e fracos fazem passar o saco de tecido cor-de-rosa pela cabeça. Mal dão tempo dela ajeitar-se e já a devolvem para a cama. E para a placa.

A letra n está meio apagada, como se fosse o prelúdio de uma palavra fantasma. Mas o resto está lá, firme e forte, para confirmar que não é sonho: a realidade da vida é a morte. O que Risalva que saber é por que esse destino demora tanto de chegar.

Para se esconder da pergunta que não tinha resposta, passa horas lembrando do passado. Fecha os olhos, negando o letreiro azul, para se reportar à época em que teve vivacidade. E de repente, sem esforço, surgem cenas e mais cenas, às vezes misturadas com sonhos.

Recorda vagamente as poucas horas felizes da sua vida. Das tristes, por outro lado, resgata precisamente as palavras e os gestos e as expressões e as roupas das pessoas envolvidas. Pode rever a mesma seqüência de imagens quantas vezes quiser - e até inventar alguns pedaços para melhorar um pouco a história, deixando-a mais cruel, mais triste e mais absurda.

A vida lhe tinha sido dura. E assim continua...

Nenhum comentário: